segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Carta para ti pai


Pai

Sempre te tratei por você, mais por medo que por outra coisa, mas hoje vou tratar-te por tu. Fez sete anos que partiste e eu nunca em vida te disse estas palavras, mas neste natal a ferida aqui dentro abriu e eu não estou em paz.. Nunca soubeste ser pai, foi pena, mas é a verdade. De ti nunca tive carinho, apenas gritos, más palavras e medo.. muito medo..

Lembro-me de todas as noites, estar deitada na cama a tremer de medo, toda encolhida, nem me mexia com medo que a cama fizesse barulho e te lembrasses que as tuas três filhas estavam no quarto ao lado, aterrorizadas, enquanto tu gritavas com a mãe e dizias que a matavas..

Lembro-me de todas as noites em que pedia baixinho vezes e vezes sem conta, sempre a chorar "Meu Deus faz com que ele adormeça rápido". Só dormia depois de tu adormeceres e a casa mergulhar no silêncio. Lembro-me de pedir a Deus que me levasse durante o sono porque não aguentava mais. Nenhuma criança devia passar por este terror.. NENHUMA, e tantas passam por pior..

Lembro-me das noites em que a mãe ia dormir comigo porque tu a expulsavas do quarto. Lembro-me dela fazer tudo para que não nos apercebêssemos que estava a chorar..

Lembro-me de todas as noites que estávamos na sala, na esperança que aquele dia fosse diferente e tu não chegasses bêbado.. mas nunca era diferente..chegavas e gritavas, apagavas a televisão e nós éramos obrigadas a ir para a cama..sempre igual..sempre..

Nunca me bateste é verdade, mas o terror psicológico foi bem pior que qualquer tareia que me tivesses dado..

Lembro-me de começar logo a tremer quando ouvia a tua mota a chegar. Ainda hoje estremeço quando ouço o barulho das motas antigas, ainda hoje estremeço quando ouço uma voz de homem mais alterada..

Lembro-me de nunca querer que o dia de escola acabasse para não ter de ir para casa..

Lembro-me de como te odiei quando um dia, talvez com uns seis ou sete anos, estava a brincar no chão com um ratito de corda com a gata e tu chegaste e esmagaste o brinquedo com o pé..meu deus como te odiei.. como não dormi a pensar o que tinha feito de mal para teres essa atitude. No dia seguinte, não te deves lembrar disto, compraste um comboio de corda, o rato não havia em Portugal tinha sido um presente da tia francesa, entregaste o comboio à mãe para ela me dar.. e eu só queria que tu falasses comigo.. mas nunca falavas.. apenas gritavas..

Queria tanto gritar contigo, espernear, dizer-te que estavas errado, que aquilo não era ser pai.. mas não disse.. era apenas uma criança assustada que não abria a boca..

Sentia pânico quando estavas presente. Um dia, num dos meus aniversários, nem sei como, pegaste-me ao colo lembras-te? Eu estava com tanto medo que vomitei.. ainda hoje eu vomito com os nervos, o medo, a ansiedade..

Nunca foste a uma escola minha, nunca conheceste uma professora minha. No dia do pai, fazíamos aqueles cartões.. eu fazia mas não os entregava a ti.. entregava à mãe para ela te dar..

Lembro-me de te observar a brincar com os meus primos e com os filhos dos teus amigos e pensar que se comigo não brincavas a culpa devia ser minha..

Eu nem sei como fui tão boa aluna, como me concentrava na escola, depois das noites de terror que passava em casa, gritos, loiça partida, nomes feios..

Talvez por tudo isto eu tenha feito xixi na cama até aos onze anos..

Talvez por tudo isto eu recusei vir para a casa nova aos dezassete anos. Fiquei a viver com a avó, numa casa pequenina, velha, cheia de humidade, chovia lá dentro, a casa de banho era na rua.. irónico uma casa tão grande e nós as três apenas viemos viver para aqui no dia da tua morte..

E dos dezassete aos vinte e cinco anos vivi assim, longe desse terror mas sempre a pensar que farias alguma coisa à mãe.. e ligava sempre e quando ela não atendia entrava em pânico..

Talvez por tudo isto eu seja tão carente de afectos, anseio por um carinho, um elogio e depois não sei lidar com eles..

Talvez por tudo isto eu me apaixone facil, me entregue com todo o amor e saia sempre magoada..

Talvez por tudo isto eu não consiga ser feliz.. se não consegui que tu me amasses como pai, tambem não consigo que nenhum homem me ame de verdade..

Talvez por tudo isto eu gostasse tanto de ser mãe, para encher os meus filhos de amor, para nunca passarem pelo mesmo que eu passei. Ao mesmo tempo tenho tanto medo de ser como tu.. mas acho que não, basta lembrar-me de todo o amor que a mãe nos deu.. mas sabes.. por muito amor que ela nos desse faltava o teu..

Talvez por tudo isto eu ache que merecia ser feliz.. talvez por tudo isto eu não consigo..

Podia continuar a enumerar n situações mas fico por aqui

Esteja a tua alma onde estiver, quero que saibas que já te perdoei. No fundo acho que sofreste tanto ou mais que nós, tambem tiveste uma infância terrivel e não soubeste demonstrar o amor que sentias por nós.. se é que o sentias.. quero acreditar que sim..

Até sempre
A tua filha
Catarina



15 comentários:

Anónimo disse...

Deixaste-me com um nó na garganta. Apenas digo que és uma mulher cheia de coragem e que é por pessoas como tu que estou nesta profissão. Muita força ;)

CF disse...

Jesus. Não conheço os sentimentos na primeira pessoa, mas conheço-os bem de perto, pela boca da minha querida mãe. E sei que ainda hoje, tem marcas profundas. E sei que não é fácil lidar com a situação, por muito que o tempo passe. Mas não é impossível. Falar sobre o assunto, é um dos caminhos, para te arrumares internamente. E se achares que necessitas de ajuda, não exites em procurar. Não deixes que essa infância te prejudique eternamente. Um sorriso para ti...

Lia disse...

Bem...nem sei o que dizer! Só que só podes ser uma mulher cheia de coragem e força!

Jocas muito gordas

Bombocaa disse...

Vais ser feliz...muito.


Kissinhos

Raio de Luar disse...

Até eu fiquei sem palavras ... Não passei por uma situação assim, porque apesar de mau pai, o meu sempre foi estando presente. Também com as bebedeiras, com os insultos à minha mãe, a mim e ao meu irmão, a brincar e dar coisas aos filhos dos outros que a nós não dava ... tanta vez que desejei a morte ao meu pai nessa altura! Mas eu não te posso entender. Tu conheces o meu pai, e vês a pessoa que ele é hoje, principalmente com a minha irmã de 4 anos! A vida mudou-o, e felizmente para pior. Tu nunca tiveste essa sorte!

Amiga, que te posso mais dizer? Fez-te bem aliviar este peso que trazias contigo. Tu mereces ser feliz, e vais sê-lo, só tens de dar-te a ti própria essa oportunidade. Não te feches, deixa-te levar de vez em quando, quem sabe se a porta para a felicidade não estará apenas a um passo?

Adoro-te e tu sabes isso! E mais, admiro-te muito por tudo aquilo que já passaste! Conta comigo para tudo :)

Beijokinhas

Eu Mesma! disse...

Minha linda...
deixaste-me com lágrimas nos olhos...

o teu testemunho é de uma transparência que corta a alma... és uma mulher forte... acredita que sim...

só sendo forte é possível aguentar tudo isso e .. no fim perdoar...

és uma grande mulher e serás imensamente feliz... nunca mas nunca duvides de ti... nem um segundo que seja!

Um beijo grande

Vaca na Lua disse...

Apenas de posso deixar um bjito directamente da Lua. Ainda vais ser muito feliz!

Kika disse...

Felizmente, não tenho essa relação com o meu pai. Mas uma pessoa muito perto de mim têm, e não consegue falar do assunto. Parece-me que deve ser mesmo assim, sem tirar uma vírgula. E por isso agradeço-te, porque ao contares a tua história poderás ajudar quem achava que estava sozinho.
És corajosa. Um grande beijo e força. Vais ser feliz.

Sei Lá! disse...

Para conseguires pôr em palavras aquilo que tinhas guardado só para ti, aquilo que tanta dor te causa só podes ser uma GRANDE MULHER!
Depois deste texto não sou apenas tua seguidora sou sem dúvida fã da corajosa mulher que escreve este blog.

Sylvie Luzio disse...

uma explosão de sentimentos faz sempre bem!
considera-te grande!
sê feliz!

tu mereces!

Guma disse...

É um texto tremendamente triste mas com tanto sentimento que tão bem faz mandar cá para fora. Sendo escrito com o coração, atinge-nos com a força que só quem por coisa idêntica passou pode compreender em plenitude. E com o peito apertado pela comoção gostava de deixar o meu apreço a quem convivendo com a mágoa se fez uma pessoa tão bonita interiormente.
Desejos de um Bom Ano 2010 e uma lufada de alegria e fellicidade merecida,preencahm os seu momentos.

Tio do Algarve disse...

Olá Kat,
Já não me recordo como cheguei ao teu blog. Também já não te visitava há algum tempo...
A tristeza que trespassa das tuas palavras, sensibilizou-me...Deves ser um pessoa extremamente forte, para ter passado todas essas situações. Mereces toda a felicidade do mundo.
Beijinhos e que 2010 te traga toda a alegria que mereces.

Miss Sunshine disse...

Passei aqui e não pude deixar de ler este post...lindo e triste.
Eu tb perdi o meu pai há 6 anos.
Um beijinho grande e um ANO ENORME para ti! Com tudo, tudo de bom!

Shell disse...

É a primeira vez que passo por aqui mas já me conseguiste deixar com uma lagrimazinha no canto do olho (e acredita que não é por ser assim tão lamechas).

És grande ! E tenho a certeza que vais ser muito muito feliz ! Quem escreve assim e sente desta forma , tem de certeza um coração de ouro e vais encontrar alguém que te aconchegue, que saiba limpar as lágrimas quando é preciso, mas que também saiba ficar caladinho quando é preciso :)

Bom ano 2010 ! *

Beijinho

Leticia disse...

ola , conheci teu blog hj e lendo vi esse texto que me emocionou muito, sofri situações muito parecidas, tive um pai alcoolatra, ele morreu sozinho, nós( eu, minha mãe e irmaos) tentamos por anos fugir ate que um dia, depois de uma bebedeira dele, fugimos com a roupa do corpo no meio da noite, lembro de quando minha mãe conseguiu chegar em outra cidade a 600 km (da casa que ele estava), parou o carro e comemoramos a nossa liberdade. Eu nunca o perdoei pelas agressões fisicas e psicologicas, tento apaguar todo esse rancor e odio por ele, quem sabe um dia..